Resolução de Conflitos de Transumância na Guiné-Bissau

"Na Guiné-Bissau, projeto inovador promove diálogo, inclusão e serviços para prevenir conflitos ligados à transumância e ao uso da terra."
A região de Gabú, no leste da Guiné-Bissau, alberga a maior população bovina do país, com cerca de 911.000 pequenos ruminantes estimados em 2009. Há gerações, os pastores seguem um sistema sazonal de transumância, movendo os seus rebanhos em busca de água e pasto. No entanto, nos últimos anos, esta prática tradicional tem enfrentado dificuldades. A rápida expansão de terras agrícolas, particularmente plantações de caju, tem levado a crescentes conflitos por terra, água e outros recursos.
Os pastores enfrentam frequentemente dificuldades para fazer ouvir as suas vozes, enfrentando marginalização, preconceitos étnicos e acesso limitado a serviços básicos como saúde e justiça. Em alguns casos, o gado é roubado ou envenenado, e terras agrícolas são incendiadas após a colheita, agravando divisões antigas. Alguns intervenientes propuseram a transição para um sistema pecuário sedentário, semelhante ao modelo usado no Senegal. No entanto, os especialistas alertam que a Guiné-Bissau não possui atualmente a infraestrutura necessária – como abastecimento de água ao longo do ano, rações para o gado e serviços veterinários – para sustentar tal transição.
Reconhecendo a necessidade urgente de soluções perante tensões comunitárias crescentes, o Fundo das Nações Unidas para a Consolidação da Paz (PBF) lançou uma iniciativa inovadora em dezembro de 2022. Implementado pela FAO, UN-Habitat, UNFPA e parceiros locais, este projeto inédito na Guiné-Bissau procura prevenir e resolver conflitos ligados à transumância e ao pastoralismo, promovendo o diálogo inclusivo, melhorando a gestão dos recursos e expandindo o acesso a serviços para as comunidades afetadas.
Transformar Conflitos através do Diálogo e da Cooperação
O projeto adota uma abordagem multidimensional, abordando não apenas disputas por terra e água, mas também desigualdades sociais mais amplas. Diálogos locais permitiram às comunidades desenvolver os seus próprios mecanismos de resolução de conflitos.
A FAO liderou diálogos com os intervenientes, oferecendo formação sobre pastoralismo, legislação e cooperação transfronteiriça, ao mesmo tempo que capacitou as comunidades para partilharem experiências e necessidades em fóruns locais. O UN-Habitat desenvolveu uma estratégia da cadeia de valor do gado em Bafatá e Gabú, reforçou comissões fundiárias já existentes – que constituem a base para melhorar a infraestrutura hídrica – e criou uma plataforma de monitorização de conflitos. O UNFPA expandiu o acesso à saúde em zonas remotas através da disponibilização de duas clínicas móveis, beneficiando muitos pastores, especialmente mulheres.
A partir destes esforços, as duas clínicas móveis introduzidas em Bafatá e Gabú tornaram-se ferramentas poderosas de inclusão e construção de confiança com as comunidades transumantes. Desde o seu lançamento em setembro de 2024, as clínicas atenderam mais de 1.800 pessoas, oferecendo serviços vitais como cuidados pré-natais a 342 mulheres, 398 ecografias, 689 vacinas infantis e rastreios nutricionais para crianças com menos de cinco anos.
Estes serviços vão além da saúde — contribuem para uma nova relação entre o Estado e populações historicamente negligenciadas. Ao levar serviços estatais diretamente a comunidades remotas, as clínicas estão a ajudar a reduzir sentimentos antigos de abandono e marginalização.
Esta presença renovada do Estado está a reforçar a coesão social e a confiança, especialmente em áreas onde os serviços públicos têm estado ausentes há muito tempo.
Para aprofundar este impacto, o projeto apoiou a criação de seis clubes de homens em cinco comunidades – três em cada região. Estes clubes, com a participação de 60 homens entre os 18 e os 70 anos, promovem o diálogo e a ação sobre temas centrais de consolidação da paz, incluindo igualdade de género, direitos humanos, saúde reprodutiva e prevenção da violência baseada no género. Os membros receberam formação para promover mudanças de comportamento nas suas comunidades, especialmente em relação à violência baseada no género e ao abandono de práticas nocivas, como a mutilação genital feminina.
A presença das clínicas móveis e das suas equipas está não só a reduzir sentimentos de marginalização, mas também a facilitar o diálogo e a fortalecer as relações entre comunidades e autoridades locais. Ao aumentar a presença do Estado e apoiar o envolvimento comunitário, estes esforços procuram abordar as causas profundas das tensões, como a exclusão e o acesso desigual aos serviços.
A sustentabilidade é uma prioridade. As clínicas são geridas e equipadas pelos serviços regionais de saúde, com o Ministro da Saúde a comprometer-se publicamente com a sua continuidade no momento da entrega oficial. Estão em curso discussões com as direções regionais de saúde para garantir contribuições regulares do governo para os custos operacionais, ao mesmo tempo que se exploram apoios da UNICEF e contribuições comunitárias para garantir a continuidade dos serviços. As clínicas estão totalmente integradas nos sistemas públicos de saúde das regiões de Bafatá e Gabú, assegurando apropriação e sustentabilidade a longo prazo.
Os esforços de reforço de capacidades estão em curso, especialmente na gestão de dados de saúde, incluindo a integração de dados de saúde humana e animal através da abordagem “Uma Só Saúde”.
Com base na estratégia de desenvolvimento da cadeia de valor do gado, estão a ser reabilitados sete furos e onze novos estão em construção nas regiões-alvo. As localizações foram definidas de forma colaborativa para permitir o acesso à água pelas comunidades pastoris ao longo das rotas de transumância, reduzindo o risco de conflito. O projeto está também a adquirir equipamentos para apoiar as Associações de Criadores de Gado, permitindo-lhes monitorizar e registar sistematicamente os casos de conflito e gerar dados estatísticos acessíveis e fiáveis para uma análise mais aprofundada dos padrões de conflito.
Adicionalmente, o projeto promove a governação sustentável da terra e da água e apoia uma transumância pacífica.
Reconhecendo a importância da participação das mulheres, o projeto adaptou a sua estratégia operacional para criar espaços onde as mulheres possam expressar preocupações e contribuir com ideias. Reuniões dedicadas com mulheres pastoras permitiram-lhes falar abertamente sobre violações de direitos humanos — incluindo casos de violência sexual e negação de direitos de herança sobre o gado — bem como partilhar aspirações, como desenvolver iniciativas de transformação do leite. Em janeiro de 2024, o projeto formou 40 intervenientes chave – incluindo jornalistas de rádios comunitárias locais, procuradores públicos, juízes e forças de segurança – sobre os direitos dos pastores e os quadros legais da CEDEAO. Esta formação já alterou mentalidades.
Cadija Camará, uma investigadora criminal de Bafatá, afirmou: “A formação ajudou-me muito. Eu não sabia que não se pode prender alguém só porque a vaca entrou no campo de uma família, o que é uma situação recorrente; saí desta formação sensibilizada e vou ter mais cuidado com o trabalho dos pastores.”
Mediação Local e Acordos de Partilha de Recursos
A partir de outubro de 2024, a Interpeace e a Voz di Paz, parceiros locais de implementação, facilitaram a criação de comités locais de mediação em Pirada e Piche (região de Gabú). Estes comités incluem pastores, agricultores, horticultoras, autoridades tradicionais e oficiais, e líderes religiosos, assegurando uma representação comunitária ampla.
Os comités adotam uma abordagem estruturada de mediação: consultam cada parte separadamente para compreender as suas preocupações, analisam as questões fundamentais que alimentam os conflitos e reúnem todas as partes para negociar soluções.
Em Piche, o comité redefiniu-se para além da mediação, passando a chamar-se “Célula Técnica de Apoio às Iniciativas de Desenvolvimento Local”. Através desta iniciativa, foram feitos progressos significativos, incluindo a declaração formal da área cultivada como terra sagrada. Foi alcançado um acordo de partilha de terras, em que os agricultores se deslocaram para outras parcelas, melhorando o acesso à água para a comunidade e reduzindo a pesca ilegal.
Em Pirada, pastores e agricultores acordaram criar uma área de pastagem partilhada com acesso à água, reduzindo significativamente os conflitos fundiários. Para manter este impulso, o comité lançou uma campanha regional de sensibilização para prevenir a pesca ilegal, a desflorestação e a má gestão da terra. Existem planos para replicar o modelo do comité noutras áreas da região.
Selo Embaló, um mediador em Piche, partilhou: “O aspeto que mudou muito é o seguinte: com a introdução das novas dinâmicas apresentadas nestes fóruns, todas as reuniões agendadas agora contam com a presença massiva dos membros da Célula. Por vezes, deixam os seus trabalhos privados para vir participar nas ações da Célula, porque a célula e as suas atividades são uma prioridade para nós em Piche.”
“Mecanismos multissetoriais de mediação em Bafatá e Gabú resultaram numa diminuição significativa dos conflitos registados em Gabú, de 80 casos por mês (em 2018-2020) para apenas 10 em 2024 (janeiro a outubro de 2024),” disse Aladji Tijane Kandé, Presidente da Associação de Criadores de Gado da região de Gabú.
Cooperação Transfronteiriça e Recuperação de Gado
Conflitos entre pastores e autoridades também afetaram as relações transfronteiriças, especialmente devido à fraca coordenação. Para resolver esta questão, o projeto facilitou diálogos transfronteiriços entre pastores e autoridades da Guiné-Bissau, Senegal, Guiné-Conacri e Gâmbia.
Realizados em Pirada (abril de 2024) e Buruntuma (setembro de 2024), estes diálogos resultaram numa cooperação mais forte entre forças de segurança e grupos pastoris. Um resultado direto foi a recuperação de 149 cabeças de gado roubadas em 2023 e 2024, registadas pela Associação de Criadores de Gado da Região de Gabú — a primeira vez que tais recuperações ocorreram. Anteriormente, os roubos transfronteiriços muitas vezes não eram resolvidos ou geravam retaliações violentas.
Aladje Tidjane Candé, Comissário da Polícia de Ordem Pública em Gabú, disse: “Como podem ver, estivemos com os nossos irmãos da Conacri, Senegal e Gâmbia, e estamos a trabalhar juntos para encontrar soluções. Os problemas são muitos: mudanças climáticas, o território pequeno, e as necessidades que aumentam dia após dia. Temos de gerir as nossas necessidades e os nossos conflitos. Caso contrário, vamos sofrer.”
O Comissário destacou que uma melhor coordenação entre os pastores transfronteiriços contribuiu para a redução dos conflitos relacionados com a transumância.

Inclusão das Mulheres na Tomada de Decisão
Historicamente, as mulheres foram excluídas das discussões sobre transumância, apesar do seu papel fundamental nas comunidades pastoris. O projeto mudou isso, assegurando espaços de consulta separados e promovendo a sua inclusão nos diálogos chave.
Aminata Seidi, uma criadora de gado de Pirada, afirmou: “Antes, as mulheres não eram ouvidas nas questões de pastoralismo e transumância, o que resultava muitas vezes em perdas humanas, até entre membros da família. Isso não devia acontecer, porque o criador de gado também é agricultor e vice-versa. Graças a este projeto e à abordagem inclusiva, hoje as mulheres participam nas reuniões sobre estas questões. Como mulher e proprietária de 30 cabeças de gado, acredito que devemos ser ouvidas, sobretudo sobre problemas como a falta de água para os nossos animais, que nos obriga a deslocações com risco de roubo, ataques e até abuso. Estou esperançosa com os resultados deste projeto, sobretudo na criação de condições para não termos de abandonar as nossas comunidades em busca de água e alimentos para os nossos animais.”
Apoio Institucional e Perspetivas Futuras
As autoridades regionais demonstraram um compromisso consistente com a resolução de conflitos desde o início do projeto. Os Governadores de Bafatá e Gabú lideraram diálogos e mediaram disputas, promovendo um acesso mais equitativo a terras de pastagem e áreas protegidas. Para reforçar a capacidade de mediação, o projeto formou vários intervenientes – incluindo líderes tradicionais, presidentes de associações de criadores de gado e organizações comunitárias – sobre legislação fundiária, mediação de conflitos e sensibilização.
O Quadro Estratégico de Desenvolvimento Territorial (SDF), desenvolvido no âmbito deste projeto, visa promover a sustentabilidade da cadeia de valor do gado e garantir uma transumância pacífica e harmoniosa. Este instrumento integra ordenamento do território, resiliência económica alinhada com a vocação de cada região e sustentabilidade ambiental.
O projeto é liderado pelo Ministério da Agricultura e Desenvolvimento Rural, com contribuições chave da Direção-Geral do Ordenamento do Território, Direção-Geral dos Recursos Hídricos, Ministério do Ambiente, governos regionais e da Comissão Nacional de Terras. As organizações da sociedade civil, especialmente as Associações de Criadores de Gado de Bafatá e Gabú, são intervenientes críticos, atuando como beneficiários diretos e agentes chave na implementação das estratégias do quadro.
Apesar dos progressos significativos, o investimento contínuo é essencial. As prioridades futuras incluem o zoneamento agro-silvo-pastoril, a institucionalização dos diálogos, a expansão dos serviços veterinários, o reforço do ordenamento do território participativo, a criação de postos de saúde nas fronteiras e a sensibilização sobre o calendário agro-silvo-pastoril.
Esta iniciativa demonstrou que a transumância pacífica é possível quando as comunidades, as autoridades e os parceiros internacionais trabalham em conjunto. Estão em curso discussões com o Governo da Guiné-Bissau e com os parceiros de desenvolvimento para manter e expandir estes esforços, garantindo que o diálogo, a cooperação e a construção de confiança continuem a orientar o caminho a seguir na região.
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