Homens dão voz pelo fim da Mutilação Genital Feminina
A luta pela mudança de mentalidade e de comportamento na agenda dos defensores da igualdade de género.
"Os homens aqui defendem as mulheres", diz Maria Augusta Correia, com certeza. Aos 58 anos, Maria é a chefe do grupo de mulheres da comunidade de Cabaceira, em Tombali, Sul da Guiné-Bissau, e uma conselheira para todas as companheiras. A anciã, no alto da sua experiência, acredita que, sem o apoio dos homens, a comunidade, também conhecida como “tabanca”, não teria conseguido acabar com a prática da mutilação genital feminina.
Ela própria foi protegida de todos estes males pelo pai, que era contra a mutilação genital feminina, quando a prática era a norma nesta região. Estima-se que na Guiné-Bissau 52% das meninas e mulheres entre os 15 e 49 anos foram submetidas a esta prática.
“Não fiz porque o meu pai não aceitou”, explica Maria Augusta, com um sorriso.
Para defender mulheres e meninas, o Comité Nacional para o Abandono de Práticas Nefastas da Guiné-Bissau, sob tutela do Governo da Guiné-Bissau, trabalha de perto com as tabancas, e contando com o apoio de organizações não governamentais regionais. Após receberam formação de ativistas das ONG’s, promotores locais andam pelas zonas mais recônditas e de difícil acesso do país, para levar mensagens aos vizinhos sobre os direitos das crianças e das mulheres e pedir o fim da mutilação genital feminina, do casamento infantil, da violência contra as crianças e da violência de género.
Nas visitas às comunidades, os ativistas e promotores fazem questão de conversar com o chefe da tabanca, o líder tradicional da comunidade, e com todos os homens. Djulde Bari, de 51 anos, chefe da tabanca de Sintcha Serifo, em Quebo, região de Tombali, entende bem o porquê. “Os homens têm voz. O que eu decido na minha casa é cumprido”, afirma.
“Se o homem decidir que não quer uma coisa, a coisa para de acontecer”, acrescenta Djulde, com firmeza.
Quando o Comité Nacional para o Abandono de Práticas Nefastas entende que a comunidade está preparada para dar um passo em frente, a comunidade assina um compromisso e declara oficialmente o fim das práticas nefastas naquela tabanca. Isto, após pelo menos dois anos de diálogo frequente com os activistas e campanhas de consciencialização.
A tabanca de Sintcha Serifo declarou o fim das práticas nefastas em 2021. O chefe Djulde conta que o processo foi demorado, porque “não é fácil mudar um comportamento. “Muitos adultos resistiram no princípio, mas como chefe da tabanca, conversei com eles e influenciei a mudança”, esclareceu, confiante.
“O que nos levava a fazer era a falta de informação”, conta Djulde. Agora todos na tabanca sabem que “as mulheres que foram excisadas têm problemas de saúde, sobretudo no momento do parto, podem perder a vida, ter infeções e quando têm relações sexuais não têm prazer”, ele acrescenta. As conversas com os promotores locais durante os últimos anos “foram muito boas para nós”, acrescenta o líder da comunidade.
O imã também é uma presença obrigatória nas sessões de conversa com os promotores comunitários. Na Guiné-Bissau, a mutilação genital feminina ocorre com frequência nas comunidades que se identificam como muçulmanas. Pelo seu poder de influência na tabanca, é preciso que estes líderes religiosos percebam as consequências da mutilação genital feminina e das demais formas de violência de género.
Na tabanca de Sintcha Serifo, o imã Mamadu Baldé apoiou a declaração do fim de práticas nefastas. Ele entende que “do lado do profeta, a mutilação genital feminina não é obrigatória”, explica calmamente. “Um ato quando não é bom para a saúde, é melhor deixar”, conclui o imã.
O chefe da tabanca de Cabaceira, Abduramane Baldé, concorda. Nesta tabanca, onde também vive Maria Augusta, a comunidade é maioritariamente é muçulmana e agora sabe que a excisão não tem fundamentos religiosos.
“Não tem nada a ver com o Alcorão, mas é uma questão tradicional”, diz Abduramane. “Não tem nenhuma outra razão”.
O Comité Nacional para o Abandono de Práticas Nefastas tem o apoio e o financiamento do Programa Conjunto para a Eliminação da Mutilação Genital Feminina na Guiné-Bissau, integrado pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) e Fundo das Nações Unidas para a População (UNFPA).
Este Programa Conjunto para a Eliminação da Mutilação Genital Feminina atua em 17 países (Burkina Faso, Jibuti, Egipto, Eritreia, Etiópia, Gâmbia, Guiné, Guiné-Bissau, Quénia, Mali, Mauritânia, Nigéria, Senegal, Sudão, Somália, Uganda e Iémen) e procura responder às causas e consequências multidimensionais desta prática.
Na Guiné-Bissau, as principais causas para a prevalência desta prática nociva parecem ser a discriminação e estigma, a debilidade das infraestruturas nacionais, a pobreza, a vulnerabilidade da população a choques e crises e as barreiras à participação ativa das mulheres nas tomadas de decisões. O Governo Bissau-guineense promulgou, em 2011, uma lei contra a mutilação genital feminina e, em 2018, adotou uma política nacional para a sua erradicação e um programa nacional. Estes esforços têm-se traduzido numa progressiva, mas lenta, redução do número de casos.
Como tal, o Programa Conjunto do UNICEF e UNFPA tem apostado no envolvimento e mobilização dos homens e os rapazes para transformar as normas sociais e de género. Isto porque a experiência tem comprovado que o apoio dos homens é essencial para defender os direitos das mulheres e crianças, e pôr fim à mutilação genital feminina. Dauda Só é um exemplo disso. Ele conta que não permitiu que as irmãs sofressem a mutilação genital feminina, mesmo indo contra a vontade dos pais. “Eu já sabia que faz mal”, conta Dauda.
Dauda sempre acreditou que as mulheres são completas como Deus as fez e não precisam de sofrer qualquer excisão. Anos mais tarde, Dauda casou-se com uma mulher que também não tinha sido vítima desta prática e passou a proteger a filha e as outras meninas da tabanca de Cabaceira.
Sem o apoio do marido, Cadi Dabo não sabe como iria proteger as filhas. Enquanto participa nas conversas sobre os perigos da mutilação genital feminina, do casamento forçado e da violência doméstica, ela faz tranças no cabelo da filha mais nova. Cadi leva a menina de 5 anos às reuniões com os activistas para que ela possa aprender sobre os seus direitos desde tenra idade.
Para Cadi é importante falar sobre isto. “Eu fui vítima de mutilação genital feminina e casamento infantil porque não sabia nada sobre isso, mas as minhas filhas não serão”, conta a jovem de 22 anos.
Cadi conta que a sua vida não tem sido fácil mas que fica feliz por ver que a mentalidade e os comportamentos na tabanca estão a mudar.
“Há muita coisa que já não fazemos”, como a mutilação genital feminina, diz Cadi.
Os promotores têm conversado com as pessoas da tabanca dela, de Gã Banna, região de Quinara, há cerca de um ano. A continuar assim, a declaração pública do fim de práticas nefastas deve ocorrer em 2024. A partir daí, os promotores locais e ativistas das ONG’s vão continuar a trabalhar com a comunidade, para garantir que não voltaram atrás no seu compromisso.
Quando uma comunidade muda os seus hábitos e se une para defender os direitos das mulheres e das crianças, os resultados são visíveis.
“As meninas são respeitadas”, conta Famata Baio, de 22 anos.
Famata vive no Bairro Areia Nalu, uma tabanca em Catió, região de Tombali, que declarou o fim de práticas nefastas em 2021.
Ela conta que ali “não há diferenças entre meninas e meninos” e, por exemplo, todas as meninas vão à escola.
A jovem está agora na 12.ª classe e quer ser educadora de infância. Quer casar-se sim, mas apenas quando terminar os estudos. Por enquanto, quer ficar na sua comunidade e zelar pelos direitos das suas amigas e companheiras.