“A angústia também mata. Viver na dependência constante de homens leva muitas mulheres à morte. Uma morte lenta.”
Com a rede ParteMulher, a FAO procura apoiar nova etapa do trabalho pela igualdade de género na Guiné-Bissau: o acesso das mulheres à terra.
Há cerimónias raras, que acabam por se tornar em momentos de verdadeira união e comoção colectiva, lágrimas a correr pelos rostos dos convidados, mesmo os dos mais altos representantes institucionais. Foi assim a 19 de Abril, na cerimónia de lançamento da rede ParteMulher, a rede nacional de apoio ao acesso das mulheres à terra criada pelo Ministério da Mulher, Família e Solidariedade Social (Ministério da Mulher) e a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO).
Na primeira fila do evento estiveram a Ministra da Mulher, Conceição Évora, e o Representante da FAO, Mohamed Hama Garba. Com eles, esteve também Madeleine Onclin, Chefe de Cooperação da Delegação da União Europeia junto da República da Guiné-Bissau, que foi secando os olhos com um lenço enquanto assistia ao testemunho de uma das horticultoras da conhecida Granja Pessubé sobre as dificuldades da vida das mulheres num país em que são o garante da segurança alimentar dos lares e a força motriz na base dos frágeis sistemas de produção agrícola nacionais, mas onde, segundo o direito costumeiro, estão interditas da posse e gestão da terra.
Alguns dias após o evento, Onclin explicou-nos a sua comoção:
“O meu coração aperta-se a cada vez que sou confrontada com as barreiras, sobretudo as barreiras culturais, que reduzem as mulheres a um papel menor e a tarefas secundárias. Isto sobretudo quando estão em causa mulheres que vivem em meios rurais nos quais não lhes é dada oportunidade de escolarização. Quando as vejo assim, subjugadas, é-me extremamente doloroso.”
É a realidade que a ParteMulher pretende impulsionar no sentido de uma mudança estrutural.
Teoria vs realidade
Criada no âmbito do projecto N’Tene Terra – Por uma Governação Responsável, o projecto de apoio à implementação da lei da terra na Guiné-Bissau que foi financiado pela União Europeia com uma dotação de mais de USD$ 3,300,000 e que está em implementação pela FAO desde 2016, a ParteMulher é a grande aposta deste projecto no trabalho pelo cumprimento do Objectivo de Desenvolvimento Sustentável 5 da Agenda 2030: a igualdade de género.
Essencialmente, o objectivo da rede é assegurar a convergência entre o direito costumeiro e o direito positivo da Guiné-Bissau, cuja constituição prevê igualdade de direitos para todos os cidadãos, independentemente do género. Ou seja: aproximar a realidade vivida pelas mulheres e meninas do universo dos direitos que, em teoria, lhes estão outorgados e de que, em teoria, deveriam usufruir desde a independência do país, na década de 1970.
Com 58 representantes regionais e uma presidente nacional a trabalhar na capital, junto dos actores e órgãos chave do poder central, a ParteMulher foi desenhada no sentido de operar a dois níveis: em primeiro lugar, intervir directamente nas comunidades, na mediação de conflitos ligados à posse e gestão da terra, em segundo lugar, oferecer apoio técnico às mulheres que procurem justiça de género na área dos direitos fundiários, através da articulação e facilitação do diálogo destas com as entidades oficiais do Estado com responsabilidades fundiárias.
“Nós sabemos que, na Guiné-Bissau, não obstantes os obstáculos culturais, boa parte das terras estão nas mãos das mulheres, embora do ponto de vista prático acabem por ser apenas possuidoras a título informal. Em termos formais e do ponto de vista das decisões, são os homens que tomam as decisões em nome das mulheres. O projecto pretende corrigir isso”, explica Bubacar Turé, o especialista de género do projecto N’Tene Terra que liderou a criação da ParteMulher.
Segundo Turé, foi com este horizonte em mente que o projecto tratou primeiro de sensibilizar as comunidades, sobretudo as lideranças tradicionais e religiosas, os homens e os jovens sobre o tema – “sobre o facto de a questão da terra ser um assunto de todos, de homens e mulheres, e, como tal, tanto homens como mulheres terem de ter voz na matéria”.
Morte lenta
Na véspera da cerimónia de lançamento oficial da rede, o grupo de representantes regionais reuniu-se em Bissau para a eleição da sua presidência nacional, escolhida entre pares por voto secreto.
Composto por um universo esmagadoramente feminino, face a um pequeno contingente de apenas 6 homens, o grupo elegeu como presidente Magda Correia, mediadora de conflitos da Rede de Mulheres Mediadoras da Guiné-Bissau (Remume-GB), que trabalha na mesma direcção.
“Esta rede de apoio é de suma importância para nós, mulheres guineenses”, explicou-nos um dia após a sua eleição. “No terreno, o nosso papel é, antes de mais, trabalhar na capacitação das mulheres, consciencializando-as sobre os direitos que efectivamente têm sobre a terra.”
Segundo esta responsável, este é o primeiro passo, a pedra de toque para a posterior resolução do problema a partir da base, operando na transformação da realidade sucessória, o sistema cultural de transmissão hereditária em que as terras são deixadas a irmãos, filhos varões, sobrinhos e outros familiares do sexo masculino, não contemplando as mulheres e meninas. É uma prática de tal forma enraizada que, segundo Magda Correia, as mulheres acabaram por se convencer da inelutabilidade dos seus termos.
É por isso, diz esta responsável, que a mudança tem de começar, antes de mais, pela reconfiguração da mentalidade das próprias mulheres. Uma necessidade não só perante o garante de justiça e dignidade individual que o Estado deve às suas cidadãs, mas também uma necessidade do próprio país, cujo desenvolvimento, de outra forma, estará comprometido.
“Só obtendo as partes a que têm direito nas heranças familiares as mulheres poderão, em todas as circunstâncias, dar continuidade à produção de cultivos, prover às suas famílias e abastecer os mercados com os produtos essenciais à saúde pública.”
Ter presença e voz a nível não apenas regional, mas também a nível central, na capital, é importante e impactará todo o processo de mudança, esclarece ainda Magda Correia: ajudará desde logo a consciencializar para a importância do tema as esferas mais tradicionalistas dos poderes locais, que são “muito rígidas em relação à mudança de mentalidades no tocante à posse da terra”.
Magda Correia sublinha ainda a situação de “pobreza extrema” em que muitas mulheres acabam quando os pais ou maridos morrem transferindo para outros homens o que seria a herança de terra das suas irmãs, mulheres e filhas.
“Sem herdar, as mulheres estão em dependência constante. Conhecemos muitos casos de conflitos que levaram à morte de mulheres que tentaram reclamar terras. E não é só porque se vêem espancadas. Sabemos que acontece, mas não é só. É que a angústia também mata. Viver em pobreza extrema, viver na dependência constante de homens, enfrentar mau ambiente no seio da família, esse sofrimento também mata – temos testemunhos, esse sofrimento leva muitas mulheres à morte, a uma morte lenta.”