Na Guiné-Bissau, iniciativa conjunta das Nações Unidas ajuda a construir uma cultura onde as mulheres podem exigir os seus direitos

Na Guiné-Bissau, uma iniciativa da ONU fortalece o acesso à justiça e empodera mulheres a reivindicar seus direitos nas comunidades.
Na Guiné-Bissau, a Constituição garante direitos fundamentais políticos, civis, económicos, sociais e culturais. Mas para muitos, especialmente nas zonas rurais, esses direitos continuam a ser apenas aspirações. Apesar das proteções formais, um sistema judicial frágil, instituições com poucos recursos e uma combinação de leis consuetudinárias e formais deixaram muitos a depender de si próprios. Em comunidades remotas, a confiança nos sistemas estatais é fraca e, para alguns – especialmente mulheres e crianças, o acesso à justiça não é apenas difícil; é quase impossível.
Reconhecendo esta necessidade urgente, o Fundo para a Consolidação da Paz do Secretário-Geral (PBF) lançou, em 2022, uma iniciativa conjunta de 3,3 milhões de dólares, implementada pelo PNUD, ACNUDH e UNICEF. O objetivo: reforçar o sistema de proteção dos direitos humanos na Guiné-Bissau, colmatando lacunas legais, capacitando comunidades e tornando a justiça verdadeiramente acessível a todos.
Com o apoio do Fundo das Nações Unidas para a Consolidação da Paz, a iniciativa reforçou estruturas de informação jurídica como os Centros de Acesso à Justiça (CAJ) — centros comunitários que prestam orientação, informação e apoio jurídico. Os CAJ também desempenham um papel de ponte entre os sistemas consuetudinários e a lei formal, ajudando a expandir a presença legal do Estado em todo o país. Existem sete CAJ na Guiné-Bissau, cobrindo quase todas as regiões: dois em Bissau e um em cada uma das seguintes regiões: Cacheu, Oio, Quinara, Bafatá e Gabú.

Do Silêncio à Força: A História de Cadija
Na aldeia rural de Sintchã Selo, Cadija, de 38 anos, foi abandonada pelo marido emigrante, mas as normas culturais, e os custos proibitivos de uma ação legal, mantinham-na presa ao casamento. Embora tivesse direito a apoio jurídico gratuito, primeiro precisava de obter um “Atestado de Pobreza”, o que implicava deslocar-se de banco em banco, pagando para provar a sua própria pobreza, uma barreira intransponível para muitas mulheres rurais.
Isso mudou quando chegou ao CAJ em Gabú. Apoiado pela iniciativa da ONU, o CAJ orientou-a no processo, ajudou-a a obter o certificado, prestou assistência jurídica e garantiu isenção total das custas judiciais. Pela primeira vez, o sistema judicial ouviu a sua voz.
"Sem a ajuda do CAJ, teria continuado presa e silenciada. O apoio deles deu-me força para recuperar a minha vida e os meus sonhos," disse Cadija.
Entre 2022 e 2024, os sete CAJ trataram 7.711 casos, sendo as mulheres responsáveis por quase 47% das submissões: 1.229 em 2022, 1.201 em 2023 e 991 em 2024. Só em 2024, 2.114 pessoas recorreram aos CAJ para obter informação jurídica. A maioria dos casos está relacionada com o direito da família, custódia, herança, violência doméstica, demonstrando tanto lacunas persistentes nas proteções como uma crescente vontade de procurar justiça.
Só em Gabú, o CAJ tratou 2.296 casos, dos quais 1.083 envolveram mulheres. O aumento anual, de 146 casos de mulheres em 2021 para 386 em 2022, sublinha o crescimento da literacia jurídica e da confiança no sistema formal.
Costumes, Conflito e o Poder da Assistência Jurídica
Mesmo na capital, persistem barreiras estruturais. Em Bissau, Aua, de 37 anos, enfrentou pressão para casar com o irmão do seu falecido marido para “manter a propriedade na família”. Quando o casamento terminou, os sogros tomaram-lhe a casa e um tribunal ordenou erroneamente a sua expulsão.
Sem mais opções, Aua recorreu ao CAJ em Bissau. Após falhada a mediação, o CAJ avançou com ação judicial, garantiu pensão de alimentos através do Ministério Público e reverteu a ordem de despejo.
“O CAJ foi a minha última esperança quando fiquei sem casa com os meus filhos. Graças a eles, tenho novamente um lar e dignidade,” disse Aua.
“O trabalho do CAJ transformou a forma como as mulheres interagem com o sistema jurídico. Vemos mais mulheres a avançar, capacitadas para reivindicar os seus direitos,” disse um responsável da Justiça, em Gabú.

Uma Rede Comunitária de Segurança: Da Mediação ao Tribunal
A iniciativa também apoiou a criação de um sistema comunitário de alerta precoce, integrando o CAJ com a Voz di Paz, uma ONG local de resolução de conflitos. Os litígios são mediados informalmente; se for necessária intervenção legal, são encaminhados para o CAJ. Para casos complexos, o CAJ liga os beneficiários à Ordem dos Advogados para representação jurídica gratuita.
“Colaborar com o CAJ abriu o diálogo entre líderes tradicionais e os tribunais, promovendo o respeito pelos direitos das mulheres nas nossas tradições,” disse um líder comunitário, em Bissau.
Reforçar os Sistemas a Partir da Base
A iniciativa adotou uma abordagem multifacetada à reforma institucional:
- O PNUD apoiou o CAJ na adaptação da divulgação jurídica às comunidades vulneráveis.
- A UNICEF ajudou o Instituto da Mulher e da Criança (IMC) a criar um sistema nacional de gestão de casos de proteção infantil, com encaminhamentos formais que incluem o CAJ.
- O ACNUDH formou funcionários do governo em cinco áreas dos direitos humanos: direitos da criança, direitos das mulheres, prevenção da tortura, direitos das pessoas com deficiência e direitos civis/políticos/socioeconómicos.
À medida que a capacidade do Estado crescia, também aumentava o envolvimento da sociedade civil. Na Revisão Periódica Universal (RPU) de 2024, a sociedade civil submeteu 21 relatórios — um aumento dramático face aos apenas dois em ciclos anteriores. Os relatórios de Bafatá e Gabú focaram-se nos direitos das mulheres e das crianças, demonstrando que a literacia em direitos humanos está a ultrapassar os limites da capital.

Jovens Líderes Entram em Cena
Rosália Djedjo, ativista juvenil desde os 15 anos e agora presidente da Confederação Nacional das Associações de Estudantes, participou em consultas nacionais sobre o registo dos direitos humanos do Estado.
“Trabalho pelo direito à educação, mas também trocámos ideias sobre proteção infantil e direitos ambientais. Foram discussões muito frutíferas.” — Rosália Djedjo
“A Guiné-Bissau nunca tinha apresentado estes relatórios antes. A sua apresentação é um marco para o país.” — Graciano da Silva Mango, Direção-Geral da Política de Justiça
Construir o Futuro
Uma das principais forças da iniciativa foi o seu modelo de co-criação: os atores estatais e a sociedade civil estiveram envolvidos desde o início.
Isto já levou a mudanças duradouras:
- O CAJ está a trabalhar para o reconhecimento formal como instituição de assistência jurídica.
- O Estado está a redigir um relatório para a Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, com base no projeto.
- A sociedade civil participa agora regularmente em mecanismos internacionais, pressionando por reformas e responsabilização.
“A Guiné-Bissau quer melhorar o seu registo de direitos humanos e está a trabalhar para colmatar as lacunas na promoção e proteção dos direitos.” — Graciano da Silva Mango, General Direção-Geral da Política de Justiça
O Caminho a Seguir
Embora persistam desafios, a iniciativa lançou as bases para um sistema de justiça mais inclusivo e responsivo. Com 7.711 pessoas alcançadas, quase metade delas mulheres, e centenas de crianças protegidas de danos, a Guiné-Bissau está a provar que, com o apoio certo, os direitos podem ser mais do que palavras no papel — podem ser concretizados.
